O Espírito dos Pássaros (Capa)

O Espírito dos Pássaros (Capa)

O Espírito dos Pássaros

Autor
Luis Carlos dos Santos

Desenho da capa
O Pássaro Azul, de António Tapadinhas

Foto da Contracapa
Raul Costa

Composição das Capas
José Pereira

Composição Gráfica
Luis Carlos dos Santos

Edição
1ª edição (e-book)/Dez. 2008 (20 exemplares)
2ª edição (on-line)/Set. 2009

Editora
Casa de Estudos de Alhos Vedros

15.9.09

6 - O EDUARDO E A SENHORA DOS ANJOS

Estão a decorrer as tradicionais festas de Alhos Vedros, em honra de Nossa Senhora dos Anjos.

No que me diz respeito, pouco ou nada tenho participado. Mais pelo meu filhote, que gosta de ver as luzes, pela música que se ouve nas ruas e pelo barulho das pistas de carros, lá me vou lembrando que estamos em festa.

É uma festa fraquinha: o programa dos espectáculos não tem nomes razoáveis, os carrosséis e feirantes são em número reduzido e a população não se envolve lá muito com a sua festa. E a acentuar a ideia podemos ver os feirantes, dois dias ainda antes dela acabar, a desmancharem as pistas e a irem embora. Com certeza vão à procura de um lugar mais rentável. Ouvi dizer que vão para Beja, festa que começa no dia de São Lourenço (Santo que também dá nome à freguesia de Alhos Vedros), a crer nas palavras do Neves, dono do café São Lourenço, que é de Beja. É caso para dizer que são pistas que andam na peugada de São Lourenço.

Dizia eu, que levaram todas as pistas de carros e carrinhos, ainda antes da festa acabar, excepção feita a uma pista infantil que estoicamente se aguentou. Hoje de manhã, quando vinha das compras com o Tomás, ele sentado no seu carrinho e eu empurrando, ainda a alguma distância, vislumbro a dita pista, fechada, só e triste, no abandonado recinto da festa. Dentro da pista um menino, sentado, calmamente aguardava.

Eu cheguei com o Tomás, três anos de idade, que mal a viu tão cheia de bicharada, motas, bicicletas e carros, ficou qual abelha de volta do mel. Subia ao cavalo, descia do elefante e ainda subia à bicicleta, já punha o olho no carrinho.

E o rapazinho lá estava. Devia ter uns dez anos de vida.

Disse-me que trabalhava na pista. Ajudava a limpar e ajudava os mais pequenos a não cair quando ela começava a rodar. E que afinal, contrariamente ao que se esperava, a noite anterior tinha tido bichas de meninos a comprarem fichas para andarem na pista. E disse-me que não ganhava nada, simplesmente ajudava.

Aquele menino ali sentado no seu carrossel mágico, esperava pelas seis ou seis e meia da tarde, para começar a ajudar a desmontá-lo. Calmamente esperava e tinha muito que esperar, já que eram onze horas da manhã. Mas parecia não ter pressa, nem estar preocupado com o facto. Amava a pista e sentado dentro dela, aguardava a hora em que ela precisasse da sua ajuda.

E disse-me que o dono da pista já tinha pensado em ir embora, mas depois coitadas das crianças que ficavam sem pista. “Não, não se deveriam ir embora sem que a festa acabasse”. E os seus olhos eram de sonho, e os seus gestos eram de ternura e de amor, e à medida que ele falava eu via-o atarefado, no meio das luzes e da música, com a pista a rodar, a tentar agarrar os mais pequenitos, não fossem eles cair e magoar-se na sua pista.

Não lhe perguntei o nome, mas aqui agora, acho que se deveria chamar Eduardo. Não sei porquê palpita-me que deve ser esse o seu nome, Eduardo, o vigilante da pista dos carrinhos, das bicicletas, das motas e dos bichos. Uma pequena, empoeirada e simples pista que as crianças adoravam.

E disse-me o Eduardo que só lhe começava a tirar o pó lá para as seis, seis e meia da tarde, porque antes não valia a pena, porque vinham sempre algumas crianças que a subiam escadas acima e a deixavam suja de terra. E o Eduardo ajudou-me a pôr o meu Tomás no melhor brinquedo da pista. Era um cavalinho com rédeas que se puxavam e o cavalinho galopava, mas claro que era num galope a brincar que era preciso imaginar. E ele dizia para o Tomás e agarrava-o quase a deixá-lo cair: “Vá, puxa as rédeas Tomás”. E para mim dizia: “É que o cavalinho tem uma mola por debaixo dele e assim é só puxar as rédeas...”. E eu via-o a agarrar nos outros meninos de ano e meio, ou dois, ou três, e ensiná-los a andar no cavalinho. E ele era feliz, muito feliz.

E eu vi no Eduardo já homem, um dono de uma pista infantil que ia de festa em festa, e disse-lhe. E o Eduardo respondeu que o avô tinha uma pista dessas das festas, mas que era muito maior.
“Então porque não andas com o teu avô?”, perguntei-lhe eu com um ar de quem não percebia porque não andava ele com a pista do avô.
E o Eduardo dizia que o avô andava com a pista dele na França, porque senão, se ele andasse em Portugal, decerto que andaria com ele e que assim já poderia deixar a escola. Eu disse-lhe que talvez o melhor seria ele andar com o avô e andar na escola. “Podias fazer as duas coisas ao mesmo tempo, andavas na escola e com o teu avô na pista”. E o Eduardo não me respondeu nada, mas pareceu-me ler-lhe nos olhos que não lhe agradava muito a ideia, que não se deveria misturar a escola com a sua amada pista de carrinhos, motas, bicicletas e bichos. E eu fiquei a pensar, eu que sou professor, que de facto nunca vira na escola tanto brilho nos olhos de uma criança como aquela que tinha ali à minha frente, e arrependi-me de não o ter só incitado a ficar com a sua pista, a limpar-lhe o pó e a ajudar os mais pequenitos para que não caíssem dos cavalinhos...

Depois ficámos ainda mais uns instantes em silêncio. Dei-lhe um pacote de bolachas que trazia no saco das compras e fui embora com o Tomás. Trouxe uma forte sensação no peito que foi aquela que me deu força para relatar o meu encontro com o rapazinho da pista dos carrinhos. E essa forte sensação no peito que ainda agora trago comigo, é uma grande sensação de alegria pela felicidade que senti no Eduardo com a sua pista isolada no ermo do recinto das festas, mas é ao mesmo tempo uma vontade de chorar, por receio de um dia o sonho do Eduardo poder acabar.


. . . . . .


À noite, depois da festa ter acabado, calhou ainda ter passado pela pista. Agora já desmontada, peça por peça, colocadas por cima de uma carrinha de caixa aberta. Estava quase pronta para partir para outro lugar, para outra festa, onde iria animar mais meninos com os seus mil brinquedos. Por cima das peças desmontadas e cuidadosamente arrumadas, sentado, estava o Eduardo que se mantinha ainda, já noite dentro, vigilante com a sua pista que fazia a delícia dos outros meninos. E estava contente, e ria-se com um outro companheiro que entretanto se lhe tinha juntado, naquela missão do desmanchar da pista.

E eu imaginei-o no outro dia, deitado na cama antes de adormecer, a pensar em quantos meninos teriam naquela noite viajado na sua pista. Como gostaria de a ter acompanhado até Beja... E adivinhei-lhe uma quase lágrima no canto do olho, por não estar junto dela, a limpar-lhe o pó e a ajudar os outros meninos a não caírem de cima dos cavalinhos.

Nessa noite, e em muitas outras noites, sonhou com a sua pista, com luzes e músicas mais bonitas do que na realidade tinha. E em muitos outros dias contou mil histórias a outros meninos que, por sua vez, também ficavam a sonhar com a pista do Eduardo.

E foi assim que passados tantos dias como histórias da sua pista contou, chegou um outro dia em que de novo começou a Escola...

4 comentários:

Anónimo disse...

Cavalinho, cavalinho
que balouça e nunca tomba
ao montar meu cavalinho voo mais
do que uma pomba...
(....)

bonito de se ler.

luis disse...

Obrigado pelo seu comentário.Só por ele, já valeu a libertação do livrinho.

Anónimo disse...

A simplicidade das coisas deixa-nos tantas vezes a pensar... e quem nos dera ver mais vezes esse brilho nos olhos de outras crianças... nos olhos dos adultos que já foram crianças...

Alexandra Viegas

luis disse...

Pois é Alexandra. No fundo, a vida é muito simples. Creio que a vibração dos mundos subtis é de uma delicadeza, de uma harmonia, tudo traduzido em iluminação, tal e qual uma bola entre as mãos de uma criança, como ouvi um dia dizer o poeta. Assim saibamos transportar sempre connosco, dentro do peito, a criança que um dia fomos. Beijinho grande.