O Espírito dos Pássaros (Capa)

O Espírito dos Pássaros (Capa)

O Espírito dos Pássaros

Autor
Luis Carlos dos Santos

Desenho da capa
O Pássaro Azul, de António Tapadinhas

Foto da Contracapa
Raul Costa

Composição das Capas
José Pereira

Composição Gráfica
Luis Carlos dos Santos

Edição
1ª edição (e-book)/Dez. 2008 (20 exemplares)
2ª edição (on-line)/Set. 2009

Editora
Casa de Estudos de Alhos Vedros

15.9.09

2 - ANDORINHAS E PARDAIS

Todos os anos, pela Primavera, as andorinhas regressam em abandono de lugares mais frios. Não se dão muito bem com o frio.

Nos beirais dos telhados, nas casas velhas, nas varandas, juntando pedacinhos de argila numa técnica muito apurada, constroem os seus lares. Neles dormem, chocam os ovos e alimentam os filhos.

Quando chega o Outono, com o arrefecimento da temperatura do ar, deixam as suas casas intactas, na esperança de que no próximo ano ainda as possam ocupar, e rumam a outros lugares em busca da desejada qualidade de vida.

Assim tem sido nas varandas da minha casa, desde que ela foi construída, já lá vão uma dúzia de anos. Há quem pendure papéis, sacos de plástico, ou faça desenhos, para as afugentar de fazer o ninho, e há até quem destrua os ninhos com filhotes pequenos lá dentro, mas eu não. É verdade que elas ainda não aprenderam a ir ao WC e como diz um amigo meu, “elas são muito giras, mas cagam-te a varanda toda”, mas eu gosto muito deste convívio e prefiro dar-me ao trabalho de limpar a varanda, do que mandar as andorinhas embora.

Quando chega a altura das andorinhas migrarem a outras paragens, deixam, então, os ninhos vazios. Ora os pardais, como a sua arquitectura não é tão sofisticada e, com certeza, por serem um pássaro esperto, não gostam muito de trabalhar, preferindo ocupar o tempo noutras actividades mais do seu interesse, ao verificarem o desperdício de tão bons lares desocupados, metem as mobílias usadas na rua e vai de ocupá-las com mobiliário moderno. Ali passam a dormir, chocam os ovos e alimentam os filhos.

O problema surge quando, de novo, as andorinhas regressam. Sempre as andorinhas se dirigem para a sua velha casa que habitaram no ano anterior. Mas como ainda não há as Conservatórias de Registo Predial para as aves, e como elas não têm intermediários a quem reclamar, têm de tratar do assunto directamente com os pardais. E digo-vos é um espectáculo impressionante, metendo guerras prolongadas, violentas, com despejos mútuos do interior dos ninhos que chega à morte dos filhos.

Na guerra a que eu assisti, à volta da propriedade de um ninho, as andorinhas acabaram por derrotar os pardais, mas estes por vingança, e já que os tumultos se arrastaram durante alguns tempos, acabaram por matar as primeiras crias desse casal de andorinhas, numa cena arrepiante. Foi assim:

O pardal macho, numa altura em que os progenitores das pequenas andorinhas se ausentaram em busca de comida para os filhos, veio até perto do ninho, encheu os peitos, duplicou de tamanho, eriçou as penas, foi lá dentro, e depois de bicar as jovens andorinhas na cabeça, mandou-as para fora do ninho, para o chão, onde acabariam por perder a vida. Foi um espectáculo que, naquele momento, me deixou bastante perturbado.

Este ano as coisas mudaram, não sei se para sempre. Da mesma forma, na mesma altura do ano, as andorinhas foram embora e os pardais lhes tomaram as casas. Da mesma forma e na mesma altura, as andorinhas regressaram e deram com a casa ocupada pelos pardais. Mas este ano em vez de protestarem, as andorinhas construíram uma casa nova ao lado dessa outra e decidiram coexistir, pacificamente, sem refilar. Este ano, andorinhas e pardais decidiram assinar um Tratado de Paz.

Não conheço as cláusulas de tal Tratado e, portanto, não sei se os pardais terão de prestar alguns serviços às andorinhas como paga dos planos de projecto e trabalhos de construção da casa, mas tudo leva a crer que não. Uma pergunta, no entanto, fica no ar: Será que as andorinhas acharam que os pardais tinham razão? Ou será que as andorinhas, simplesmente, decidiram perdoar?

4 comentários:

Anónimo disse...

Muito interessante. Desconhecia em absoluto esta situação da ocupação das "casas" das andorinhas pelos pardais, assim como a violência destes sobre as crias das outras.

luis disse...

Manifestação de uma violência arrepiante. A natureza, nesta complexa hierarquia de seres e de relações em que nos integramos, funciona entre a maior das benevolências, das calmarias e das mais ternas relações de amor, até às maiores hecatombes, à súbita e impiedosa aniquilação de toda e qualquer forma de vida. Nesta dimensão do espaço-tempo em que vivemos, a vida revela-se, por vezes, em circunstâncias muito desagradáveis. O que fazer? Será que existem maneiras de contornar essas imensas formas de violência? Será que existe um "caminho do meio" que nos ponha a salvo de maiores atribulações? Será que os profetas nos podem dar uma ajudinha a ultrapassar grandes obstáculos? No fundo, tudo é simultaneamente muito simples.

Anónimo disse...

mas haverá vontade????

luis disse...

Cada um será responsabilizado pelas suas acções. Pela minha parte há toda a vontade do mundo. Não sei é, se mesmo assim, será suficiente. Espero bem que sim.