O Espírito dos Pássaros (Capa)

O Espírito dos Pássaros (Capa)

O Espírito dos Pássaros

Autor
Luis Carlos dos Santos

Desenho da capa
O Pássaro Azul, de António Tapadinhas

Foto da Contracapa
Raul Costa

Composição das Capas
José Pereira

Composição Gráfica
Luis Carlos dos Santos

Edição
1ª edição (e-book)/Dez. 2008 (20 exemplares)
2ª edição (on-line)/Set. 2009

Editora
Casa de Estudos de Alhos Vedros

15.9.09

1 - O PÁSSARO AZUL

1º Capítulo – O Poeta, o Pintor e o Pássaro Azul

1.
Devia estar pelos quinze anos.
Naquele dia o campeão distrital de xadrez faria uma simultânea na Vélhinha, a colectividade onde se reunia com os seus amigos e onde também se jogava o xadrez.
O campeão era uma pessoa da terra, já tinha ouvido falar nele. E ele lá apareceu. À hora marcada as mesas estavam arrumadas, os tabuleiros estavam dispostos e os meninos estavam sentados prontos a iniciar o jogo. Eram por aí uns quinze os que se dispuseram a enfrentar o campeão e ele ganhou. A única vitória. Houve também um empate. Ficou sempre na dúvida se a sua vitória tinha sido permitida pelo campeão, ou se o mérito tinha sido inteiramente seu. Como era possível ter ganho ao campeão?
Agora pouco interessava, passados um quarteirão de anos já não era muito importante, mas a recordação lá estava desse tempo de menino.

O campeão de xadrez, uns anos mais tarde virou campeão de bilhar. Tinha ouvido um seu amigo comentar. De tal forma era dedicado e habilidoso que não o fazia por menos, e a dedicação trazia-lhe alguns triunfos de volta. Mas não era só a dedicação. Trazia com ele mais qualquer coisa, um não sei quê de diferente. Era calmo, muito calmo, e era também muito delicado. As palavras saiam-lhe sem pressa, certas, sem agressividade. Havia de o encontrar num salão de snooker, duas ou três vezes, onde de vez em quando ia com um amigo que também era muito bom jogador.

Fumava muito o campeão. Chegava aos três maços por dia. E provavelmente pelo elevado consumo de tabaco, talvez por alguma tensão que sempre está associada ao jogo, o coração não aguentou. Acidente cardiovascular foi o diagnóstico.



2.
O médico proibiu-o de fumar e, consequentemente, de jogar. Ele obedeceu. Mas como contrapartida decidiu nunca mais ir ao médico. Os últimos exames, até que tinham revelado algumas melhoras, mas sem uma razão que se apresentasse lógica achou que a doença só deveria depender de si.

Encontraram-se por destino uns anos mais tarde numa galeria de pintura. O campeão tinha virado pintor, porque a isso o tinha levado a necessidade de uma vida calma. Sempre tivera, de resto, uma vida profissional ligada ao desenho e, portanto, não se tratava de uma actividade que constituísse novidade. O outro, meio poeta, tinha ido ver a exposição. Cumprimentaram-se, trocaram umas palavras, fizeram uma visita guiada às suas pinturas e despediram-se. Tinham passado mais de um quarteirão de anos desde a simultânea de xadrez.



3.
Num dia marcado por alguma monotonia, o poeta decidiu dar-lhe algum movimento e, deambulando monotonamente, com alguma fragilidade até no seu jeito de se dar, rumou até uma Feira de Artes e Ofícios que fazia decorrer o seu último dia. Meteu um livrinho na algibeira com escritos seus e decidiu-se oferecê-lo a quem encontrasse. Sempre por alturas de fim de ano, compilava uns textos escritos por si e imprimia uma dezena, duas dezenas, de livrinhos que oferecia aos amigos.

Foi o renascido pintor que encontrou. Ofereceu-lhe o livro, viu e comentou as pinturas, e conversaram sobre o fracasso do miocárdio e das mazelas que ficaram. Porque já não era mais o mesmo. Metabolismos que foram destruídos.
Nunca se sabe, disse o poeta, há razões que o próprio coração desconhece. Por vezes há males que vêm por bem. E a justificar a afirmação contou-lhe uma história que tinha ouvido a uma discípula de Gustav Yung, na TV. Contava ela que, por detrás de uma perna partida, num momento aparente do mais puro dos azares, se revelaram acontecimentos benfazejos que do trágico acontecimento dependiam. Uma forma de dizer que a vida lá tem as suas razões para o melhor e para o pior, ou que, de resto, nem merece a pena pensar-se de outra maneira, porque depois do mal acontecer não há nada a lamentar.

O pintor agradeceu as ofertas com um terno sorriso nos olhos e despediram-se.



4.
O Luís Guerreiro, um amigo meu, que faz da azulejaria artística a sua profissão, decidiu-se por abrir uma galeria de artes. Chamou-lhe Arquivos Guerreiro. Para inaugurar a Galeria convidou dois amigos artistas, brasileiros, amigos da sua brasileira esposa. E foi entre cachaça, castanhas de caju, amêndoas e vinho tinto, que o pintor e o poeta se haviam de encontrar de novo.
A festa tinha um poeta popular de 77 anos, o senhor Patinha, que ia debitando de cor alguns poemas que tinha escritos e gravados na memória.
Foi então que o pintor contou da sua última exposição. Tinha sido no Pinhal Novo. Uma senhora apareceu com um violino e pôs-se a musicar cada uma das pinturas expostas. Um momento que não podia esquecer. E vai daí, porque de misturar diferentes linguagens artísticas tratava a conversa, o pintor pediu ao poeta que lhe enviasse um poema por fax para misturar a pintura e a poesia.

E despediram-se.



5.
Ficou com a ideia na cabeça. Durante alguns dias magicou com ela, e ao quinto dia o poema saiu. Tratava-se de um pássaro. Um pássaro azul. Um pássaro que pairando tinha sido captado pelo olho do pintor, dele tinha passado para a tela e da tela tinha saído, correndo através da manhã. Pois bem, enviou-lhe o poema por fax.

Uns dias passaram e o telefone tocou. A pintura estava pronta. Marcaram encontro no café e, enquanto conversavam, expuseram o quadro mesmo na parede da frente. E o pássaro lá estava, interagindo com uma criança, ele com o bater das asas, ela com o estender da mão. Foi então que lhe contou a história do porquê de um pássaro azul:

Numa outra altura já tinha feito um poema intitulado Pássaro Azul. Não este poema, um outro. E tinha-o musicado, porque de uma canção se tratava. Essa música tinha-a tocado para um amigo, camionista de profissão que se deslocava com frequência a França. Numa dessas viagens, contou-lhe o amigo, enquanto galgava estrada atrás de estrada, veio-lhe ao pensamento a canção e, no mesmo momento, um pássaro azul, real, apareceu defronte do camião.

Pois bem, disse o pintor, este quadro poderá ser oferecido para um leilão de beneficência. Talvez para uma Misericórdia. Ás vezes pedem-me para colaborar... O poeta nem tinha que concordar, mas achou a ideia feliz. Chegou a desejar ficar com o quadro para si. Pressentia-lhe uma qualquer magia.

O poeta, que para além da poesia, outras coisas escrevia, tinha sido convidado para participar num jornal local. Ora, como o pintor também gostava de escrever, logo ali foi feito o convite para também ele participar no jornal. Ele aceitou. E foi assim que se passaram a encontrar com o director do jornal todas as quintas-feiras, dia em que se juntavam para conversar sobre a vida do jornal.





6.
Um dia, como o mundo é pequeno, um amigo do poeta foi dar com o quadro do pássaro azul num restaurante. O pintor tinha feito uma exposição mais e, no meio de outras telas, resolveu colocar também a do pássaro azul que como todas as outras tinha o seu preço. Decidiu ir almoçar a esse restaurante e, já sabia, o quadro seria seu. Comprou-o.

Mais uma quinta-feira chegou e encontraram-se no café antes de ir à reunião do jornal. O pintor contou-lhe que o quadro tinha sido vendido, mas o poeta num súbito impulso resolveu, naquele momento, não lhe dizer que tinha sido ele o autor da compra. E foram para a reunião.

Finda a reunião saíram do jornal. Eram onze horas de uma noite calma. Caminharam pela rua e traziam um sorriso nos lábios. O pintor bateu com a mão no ombro do poeta, em sinal de demonstração dessa contida alegria interior. E nesse mesmo momento, um pássaro saído de dentro da noite, caído do céu, pousou à frente dos dois. O pintor jogou-lhe a mão e apanhou-o. Estava assustado coitado. Levou-o para casa. Não sem que antes levasse uma bicada que lhe deixou o dedo a sangrar.

Sei que lhe comprou uma gaiola e que lhe deu de comer. Era uma caturra. Eu perguntei-lhe qual era a sua cor e ele respondeu-me que tinha várias tonalidades, mas que se tivesse de dizer uma cor, então, era azul.

Um dia destes hei-de ir lá visitá-lo.


2º Capítulo – A Rúpi, um Pássaro Azul



1.
O poeta vinha subindo a avenida que o levava a casa. Calmamente, guardando o mundo em si, caminhava e talvez assobiasse. De repente, um pássaro passou rente à sua cabeça e poisou a três metros de si, no parapeito da montra de uma loja que vendia roupas. Lá vinha, outra vez, o pássaro azul. Era, de novo, uma caturra.

Ficou parado a olhar o pássaro que, por sua vez, olhava para si. Nalguma excitação de ideias foi pensando que se aproximasse, com certeza, ele fugiria. Por outro lado, se não fugisse e se deixasse agarrar, teria de tomar conta dele e assumir tudo o que isso significasse – água, comida, roupa lavada.... Enquanto indeciso pensava, um velhote se aproximou e percebendo a sua inquietação, incitou-o, num gesto determinado, a tentar apanhá-lo. Era o Ti Chico, o Mais Velho de Alhos Vedros.

Jogou a mão, devagar, e na verdade até pareceu que o animal estava à espera de alguém que o agarrasse (“deve ter fugido de alguma gaiola e estar desorientado”, pensou). Mas não sem antes lhe ter pregado uma valente mordidela, deixando-lhe um dedo a sangrar. Corajosamente resistiu à dor e enfiou o pássaro numa mala de livros que, por acaso, trazia.

Levou-o até casa, meteu-o numa gaiola que para lá tinha abandonada e foi comprar acessórios para a gaiola, mais comida, não fosse o pássaro estar com fome. Depois de tratar do animal reparou que, afinal, aquela gaiola era demasiado pequena para uma caturra. Mas teve sorte. Um familiar tinha uma gaiola apropriada, vazia, guardada no sótão, e aprontou-se a emprestá-la. Novos acessórios teve de comprar para que o bicho ficasse razoavelmente instalado, mas pronto, parece que agora era só alimentá-lo e assumir sem mágoa o que lhe tinha reservado o destino.

Estava muito enganado.



2.
As caturras são pássaros afáveis, pouco esquivos, convivendo bem com a proximidade do homem. Pelo menos a julgar por algumas informações que foi angariando, desde que a caturra lhe “caiu na sopa”, já que o seu desconhecimento sobre estes pássaros era absoluto. Só não gostam muito das mãos e dos dedos, pois que as leva a abrir agressivamente o bico, em sinal de pronta defesa. Com certeza, com medo de serem agarradas, o que não lhes agrada nada.

O tempo foi passando e o poeta foi reparando que o facto de ter um bicho preso numa gaiola era para si um incómodo. Uma gaiola assemelhava-se demais com uma prisão e começou a ter pena do bicho. Triste sina ver o mundo aos quadradinhos e com asas, mas sem poder voar.

Pensou, então, em dar-lhe liberdade, mas dois grandes obstáculos se levantaram: Primeiro, disseram-lhe que o pássaro não sobreviveria num ambiente desconhecido, já que era oriundo dos trópicos e não se conseguiria alimentar sozinho, depois de estar habituado a viver em cativeiro. Segundo, o seu filho, cinco anos, adorava o pássaro e não queria por nada deste mundo que o afastassem dele.

Posto isto, pensou como alternativa, deixá-la à solta lá em casa. Mas como poderia conviver com um pássaro daquele tamanho e de rabo comprido? A sua companheira não gostava nada da ideia e depois, com certeza, que iria espalhando comida e cagando por tudo que é sítio.

Resolveu comprar-lhe um poleiro que substituísse a gaiola. Pelo menos livraria a caturra do olhar por detrás das grades. Tinha conversado com a mulher da loja dos animais e ela, que tinha um poleiro para vender, aprontou-se a enfiar uma argola com corrente na pata do pássaro e garantiu a pés juntos que a caturra “ficaria optimamente bem instalada”. E ele acreditou.

Mas não. Ainda assim, as suas ânsias de liberdade não se satisfizeram com a sorte da caturra. O poleiro não era bem aquilo que pensara. Como se não bastasse, a argola metálica que prendia a pata do bicho, ficara um pouco apertada, deixando-o numa aflição e debicar constante, daquele estranho objecto que o mantinha preso aquela caixa de ferro.

E ela batia as asas, mas não conseguia voar.




3.
Decidiu-se pela libertação da Rúpi, o nome com que o seu filho a baptizara. Doravante, poderia voar por onde lhe apetecesse que ele assumiria a limpeza das cagadelas. Acabou por se tornar mais fácil do que inicialmente pensara. A Rúpi tinha, mais ou menos, poisos certos, geralmente os varões dos cortinados, o que lhe permitia resolver o problema, metendo umas folhas de jornal, no chão, por debaixo dos varões. E depois, era só ir comprando jornais e substituindo as folhas.

No dia seguinte ao da libertação uma surpresa o aguardava.

Sentou-se à mesa da sala, onde também estava a Rúpi poisada num dos seus varões preferidos, e preparava-se para iniciar uma qualquer leitura. De repente, um bater de asas em voo picado e tinha a caturra poisada no seu ombro. Tentou não ligar muito ao facto, até para não a assustar, pois percebera que o primeiro contacto físico com a Rúpi tinha da sua parte uma intenção amistosa e pacífica. Era um pássaro estranhamente manso.

A partir dali as visitas da Rúpi tornaram-se constantes. Estivesse a ler, estivesse a comer, ou estivesse simplesmente de passagem, lá vinha a Rúpi descansar no seu ombro. De tal forma, que se tornou excessivo. Por vezes, apetecia-lhe estar sem ter um pássaro ao ombro. Foi assim que aprendeu a atraí-la com o recipiente com que lhe dava comida. Estendia-lhe o comedor e ela poisava no seu beiral, o que lhe permitia em seguida encaixá-lo no poleiro e, pelo menos enquanto ela comia, dava-lhe descanso.

Mas a Rúpi não se amestrava, assim, sem mais nem menos. No espaço de tempo que ia desde que lhe estendia o comedor, até o colocar no poleiro, a Rúpi bicava-lhe um dos dedos com que o segurava. E as caturras têm um bico forte e afiado que lhes dá facilmente, por exemplo, para partir a casca das sementes de girassol, com que se alimentam, e que dava para, quando bicava com mais força, lhe deixar o dedo a sangrar. Decididamente, a Rúpi não gostava de dedos. Ocorreu-lhe, então, que tinha de comprar uma dedeira, daquelas que usam as peixeiras para se protegerem das espinhas do peixe. “Compram-se nas farmácias”, disse-lhe a sua companheira.



4.
Na altura andava a ler um livro, cuja segunda parte se chamava “A Linguagem dos Pássaros”, de José Manuel Anes, que mais fazia lembrar as coisas dos egípcios e as cabeças de pássaro que alguns deles traziam na cabeça. Tinha também acabado de publicar um livro de poemas, numa editora inventada para o efeito, a que chamou de Casa de Estudos de Alhos Vedros (CEAV) e que se lê SÊ AVE. Aliás, o próprio nome de Alhos Vedros poderá resumir-se em AVES. Mas também, como era crença sua, em “Homens Velhos com Asas”, definição a que chegou depois do Professor Agostinho da Silva lhe ter dito que Alhos Vedros também significava Homens Velhos, sem que lhe referisse o porquê, nem qual a fonte.

E foi assim que a Rúpi, um pássaro de cabeça amarela, com duas bolas redondas e vermelhas nas faces como se estivesse sempre envergonhada, o corpo de um cinzento azulado, o extremo das asas branco e com um rabo muito comprido, entrou na vida do poeta. Ela, mais a comida, as limpezas, o poleiro, os jornais, a dedeira, a sua agradável presença, o pensamento de quem lhe dará comida quando tiver que se ausentar por uns dias e a sensação de uma certa liberdade por não a ter presa por uma pata, nem dentro de uma gaiola.


3º Capítulo – Voando através dos tempos



1.
A Rúpi esvoaçou livremente pela casa durante vários meses. No início foi limitando o seu espaço à cozinha e à sala que eram comuns, mas depressa se atreveu pelas outras divisões, sobretudo, pelo escritório, uma sala que ficava no extremo oposto da casa que para lhe aceder se tinha de atravessar um longo corredor. E então lá andava a Rúpi em voos rasantes, de um lado para o outro da casa, conforme as suas conveniências que, na maioria dos casos, era estar perto dele. A Rúpi perseguia-o pela casa e o seu ombro era o poiso preferido.

Deveria ser realmente poético, e até reconfortante em muitas ocasiões, dividir a casa com um Pássaro Azul de razoáveis dimensões que o tinha eleito como o seu melhor e inequívoco amigo. A companhia, os voos rasantes, o bater das asas, o peneirar, os mimos que lhe dedicava, iam justificando os contratempos que o bicho causava. Mas o passar do tempo haveria de lhe mostrar a razão, porque mais ninguém tinha em casa como animal de estimação um pássaro daquele tamanho à solta. Inicialmente até que conseguiu alterar-lhe alguns dos maus hábitos, como não deixá-lo estar presente durante as refeições, porque por sua vontade andava por dentro dos pratos, debicando por tudo que havia; ou não a deixar pousar no ombro quando não estava para aí virado. Mas a amestração da Rúpi revelava-se uma tarefa delicada que exigia tempo, paciência e persistência, o que sem dúvida eram obrigações a mais para a liberdade de ter um pássaro à solta. E depois, percebeu que nunca conseguiria ensinar-lhe o caminho da casa de banho, o que constituía mais uma das grandes complicações.

Então qual a alternativa que se impunha? Voltar a enfiá-la numa gaiola estava fora de questão. Podia simplesmente abrir-lhe a janela e empurrá-la para a rua, mas tinha-se convencido que ela sozinha não sobreviveria. Acabou por se decidir por um viveiro de pássaros que os alunos de uma Escola próxima tinham construído. O viveiro tinha umas dimensões razoáveis, e embora não fosse o mesmo que viver em plena liberdade, pensou que aquela constituía a solução ideal para o Pássaro Azul.

Dirigiu-se à Escola, falou com quem devia falar, e passados dois dias tinha dado um novo lar à Rúpi. Doravante passaria a viver na Escola José Afonso.



2.
Uns dias depois foi visitá-la. A pessoa que tratava dos pássaros era um velho conhecido seu, o Zé Manel, e não lhe era difícil visitar a Rúpi quando disso tivesse vontade. Aproximou-se do viveiro, e andando o Zé Manel por perto, perguntou-lhe como se estava ela a adaptar à nova casa. Ele foi dizendo que estava tudo bem, que comia, que bebia, não guerreava com os canários e periquitos que já lá estavam, por isso estava tudo bem, e acompanhou as palavras com um encolher de ombros... enfim, para ele era trabalho. Enquanto ia conversando com o Zé Manel, à medida que se abeirava do viveiro, pôs-se a chamar pelo seu nome e a emitir uns sons que habitualmente fazia quando se lhe dirigia, e ela respondeu-lhe, com um cantar eufórico, mas em queixume, como se procurasse compreender melhor o porquê do que lhe tinha acontecido.

O Zé Manel, homem de poucas palavras e parco em entusiasmos, mas de sensibilidade apurada, depressa reparou na choradeira da caturra e interiorizou os sentimentos do bicho. Tanto que lhe arrancou algumas das poucas palavras que pronunciou durante a minha visita: “Quando tu a deixaste cá, depois de ires embora, ela ficou o tempo todo agarrado à rede, a olhar para ti, até que lhe desaparecesses da vista”.

E é claro que isso lhe apertava o coração.



3.
Num outro dia, numa outra visita, reparou que a Rúpi estava demasiado só. Precisava de um companheiro da sua raça. E foi isso mesmo que acabou por propor ao Zé Manel. Iria à loja de animais lá do sítio que, já tinha reparado, também vendia caturras e compraria uma, de forma a acabar com a solidão da sua amiga. “Achas isso possível Zé Manel? Será que não haverá problemas com os gestores do estabelecimento?” Como o Zé Manel acedesse e para minimizar possíveis problemas, propôs-se a comprar também ração quanto bastasse. Depois de combinar a hora ideal resolveu que no dia seguinte iria à loja buscar o companheiro da Rúpi.

No dia seguinte, e para grande surpresa sua, o seu filho que não sabia da decisão que tinha tomado de comprar uma outra caturra, chegou a casa em tom de grande euforia a dizer que a Rúpi já tinha um amigo. Tinha acabado de passar pela escola para visitar a Rúpi e tinha deparado com duas em vez de uma só. Com certeza que tinham decidido na escola comprar um companheiro para a Rúpi a custos próprios, pensou. Estranhou, no entanto, o facto de ninguém ter dito nada, porque não fora o seu filho e poderiam em vez de duas, ter passado a três caturras. Mas pronto esqueceu o compromisso.

Um dia depois, à noite, foi encontrar o Zé Manel num bar que ocasionalmente frequentava e dispôs-se a esclarecer a situação. Afinal, ninguém comprara mais nenhuma caturra. Disse o Zé Manel que naquela manhã, enquanto ia regando as árvores, de repente, apareceu uma caturra. Perseguiu-a, mandou dois ou três mergulhos para o chão a tentar apanhá-la, qual miúdo de boné revirado, mas que depois lá conseguiu pegá-la numa árvore baixa em que ela tinha pousado. Ao apanhá-la, e para não escapar à regra, levou uma valente mordidela que lhe deixou o dedo a sangrar. Agarrou-a pelo pescoço e foi assim que a levou para dentro do viveiro.

E foi assim que a Rúpi passou a ter um companheiro com o qual se acasalou rapidamente, com certeza para recuperar de desgostos amorosos recentes. E foi também assim que, na vida do poeta, o Pássaro Azul continuava a fazer história, de tal maneira, que num curto período de tempo lhe ia trazendo caturras atrás umas das outras. O que seria?

Relembrando, e regressando ao início da estória, o Pássaro Azul começou por lhe aparecer como título de uma poesia que depressa ganhou música e se transformou em canção. Uma canção que fala da largada do si em direcção ao Todo, ao absoluto, ao amor.

Depois de cantada a canção, o Pássaro Azul encarnou e tornou-se real, de penas, carne e osso, quando apareceu diante do seu amigo camionista, a justificar a importância da amizade, revelando-se ele próprio como amizade, mas que ainda assim, haveria de derivar em desencontro.

Foi, então, que de novo se tornou poema, desta vez para se transformar em pintura, uma aguarela amarela (e azul), bem definida na tela, exposta e comprada pelo poeta, regressando assim ao seu lugar de origem, ou seja, a sua casa, onde a estória se iniciou e onde pela primeira vez se deu conta da existência de tal Pássaro.

Vasculhou nas prateleiras da memória e reparou, desconfiadamente, na sua ligação de sempre aos pássaros. Na forma como os capturou, e como os capturaram os entes passados, como lhes aprendeu o canto, como sentiu culpa e remorsos por privá-los de liberdade, até se sentir perdoado. Ou então, nalgumas pinturas oferecidas por amigos próximos, uma que falava da “Conferência dos Pássaros”, outra numa personificação de um pássaro, um homem com enormes asas e cabeça de pássaro. Mais uma vez a Criação, mais uma vez a Amizade. Ou ainda, pela Casa de Estudos de Alhos Vedros (Sê Ave); ou ainda pela etimologia imaginada de Alhos Vedros se definir por Homens Velhos com Asas. Tudo isto foi buscar aos arquivos da memória, sem que antes tivesse dado pela significância de todos estes acontecimentos, se é que haja razão para lhe dar significado. Foi tudo isso que o levou à compra de um livrinho ilustrado, com texto do Gabriel Garcia Marquez, chamado Um Homem Muito Velho Com Umas Asas Enormes, quando este em certa ocasião se lhe deparou.

Mas o Pássaro Azul não se ficara por ali, ao regresso à casa do poeta, mas novamente se transformou, e de dentro da tela voou para uma aparição, através de uma noite cerrada, ao encontro do poeta e do pintor, que um dia fora campeão de xadrez. Ainda uma e outra vez reencarnou.

Por fim, foi encontrar o Pássaro Azul transformado em título de uma revista que em tempos fora editada, em França, pelo Professor Roger Cousinet. Uma revista com textos exclusivamente escritos por crianças, os seus alunos, onde se tenta misturar a escola com a liberdade, pois que é a partir da sua própria vontade e dos seus próprios textos que as crianças vão aprendendo a ser, longe dos métodos de uma escola tradicional e castrante que nos vai mantendo agrilhoados a uma mentalidade caduca, mas que ainda vai teimando em resistir.

Quer dizer, o poeta, foi encontrar o Pássaro Azul lá longe, em letras do início do século, a revelar-lhe que, afinal, foi voando através dos anos que ele chegou à sua casa. Um Pássaro que ora se diz, ora se vê, outras vezes pinta-se e escreve-se, e que tantas vezes encarna e reencarna. Um Pássaro Azul que é amizade e liberdade, sintetizadas ambas em amor, produto afinal de uma mesma energia criadora que nos assiste.

Somos nós, enfim, esse Pássaro Azul.

5 comentários:

Anónimo disse...

Esta história deixou-me completamente "colada" ao ecrãn do pc, de tão bonita e cativante, só desejava saber o seu final.
Não é apenas bonita, está bem contada. Em certos momentos dei por mim a acompanhar as personagens, as ruas, as tropelias das caturras, as cores. Tudo, tudo tão incrivelmente real. Houve momentos em que a história me comoveu. Comovem-me sempre as relações entre os homens e os animais (as verdadeiras relações de amizade), sejam aves ou outros.
Parabéns!!! Foi um belo momento, um certo encantamento, este do pássaro azul.

luis disse...

O autor agradece a gentileza das suas palavras.

O Pássaro Azul manda en-cantos para si
e diz que, provavelmente, um destes dias
se cruzarão por aí.

Eu, já agora, recomendo-lhe a leitura do conto "Um Pombal na Varanda". Depois perceberá porquê.

A.Tapadinhas disse...

O espírito do pássaro azul continua a seguir-nos. Aquela caturra (fêmea, como tu disseste que seria!?), que se ofereceu para fazer companhia ao macho
"assobiador", é a prova da sua continuidade!

Agradeço-te, do fundo do coração, os enternecedores momentos de leitura que me deste. Foram únicos: Gostei muito de chorar...

Namasté!
António

PS. Gostava de partilhar com os meus amigos a edição do livro no meu blogue. Ainda não sei como...

A.Tapadinhas disse...

Da leitura do conto "Um Pombal na Varanda", atrevo-me a fazer uma precisão que tem tanto de científico, como a tua previsão sobre o sexo da minha jovem caturra!

O tal Domingo de Dezembro foi no dia 5 de 2004!

Porquê? Porque consultei um Calendário Excel e o ano em que começava era 2004 e, por coincidência (?), o 5 de Dezembro é no Domingo em que completei 62 anos. Nesse dia, quando fui fechar as portadas, estava pousada na palmeira do meu quintal uma pomba branca...

Namasté!
António

luis disse...

Amigo, fui consultar os meus arquivos e bate certo. Foi mesmo nesse teu dia de aniversário. Nem sabes como fico feliz. Depois da triste apreensão pelo desconhecimento do paradeiro daquela minha inquilina, agora é a euforia do contentamento por saber que afinal tudo correu bem.
Também agora, finalmente, percebi a luz que sempre vi em ti desde miúdo e que, para mim, sempre foi plena de sentido. Essencialmente somos Um.

Aquele Abraço.